Desafio Livros pelo Mundo | China: O Problema dos Três Corpos, de Cixin Liu


O objetivo do Desafio Livros pelo Mundo é mostrar que existe literatura de ótima qualidade por todos os lugares do mundo, e não apenas no eixo EUA-Inglaterra. Assim, valorizamos a diversidade e a pluralidade de culturas e realidades. Por aqui, já passaram onze países e agora é a vez da China, com a excelente obra de ficção-científica de Cixin Liu, "O Problema dos Três Corpos".


Cixin Liu foi o primeiro escritor fora do eixo EUA-Inglaterra que ganhou o maior prêmio de Literatura de Ficção Científica, o Prêmio Hugo, depois de ter ganhado nove vezes consecutivas o prêmio correlato chinês, o Galaxy Award. "O Problema dos Três Corpos" é o primeiro volume da trilogia "Remembrance of Earth's Past", cujos próximos volumes ainda não tem tradução para o português.

Em "O Problema dos Três Corpos" existem diversas camadas na estória e, para facilitar esta resenha, falarei separadamente de cada uma delas. De longe, esta é a resenha mais complicada e longa que já escrevi.

No início do livro, o leitor é apresentado a Wenjie Ye e à Revolução Cultural da China. O próprio Cixin Liu cresceu na época desta Revolução, que foi um período marcado por extrema violência na China, com guerras civis espocando por todos os lados e uma ideologia de destruição do capitalismo e da burguesia. Milhões de pessoas foram perseguidas e executadas em praça pública por civis partidários da Revolução, sem nenhuma punição ou intervenção do Governo. Assim, a estória começa com o pai de Wenjie Ye, Zhetai Ye, sendo torturado e morto por seis adolescentes em uma praça, depois de ter sido denunciado pela própria esposa, mãe de Wenjie Ye, e pela sua irmã mais velha.
Nesta época, físicos e cientistas eram considerados inimigos da Revolução Cultural, pois acreditava-se que suas idéias e propósitos serviam ao capitalismo e às classes sociais mais fortes e ricas. Por isso, Zhetai Ye foi morto, pois era físico, e Wenjie Ye precisou fugir, pois ela própria também estudava para tornar-se astrofísica.
Este pano de fundo político irá permear toda a narrativa, pois os efeitos da Revolução Cultural na sociedade chinesa repercutiram por muitos anos. É uma boa maneira de aprendermos mais sobre a História deste país e as passagens são muito chocantes. Assim, o livro já começa com um chute no estômago e uma cena de morte violenta e assustadora.

Depois, a estória avança 40 anos e o leitor conhece Miao Wang. Ele é pesquisador de um novo material inovador chamado nanomaterial, que possibilitará que, no futuro, o homem construa uma ponte para o Céu (claramente inspirado neste livro de Arthur C. Clarke). Um dia, Miao Wang é emboscado por Dai Shi, um investigador privado de uma organização secreta, organização esta que quer utilizar-se dos conhecimentos do nanomaterial. Em paralelo, uma contagem regressiva aparece no campo de visão de Miao Wang e quase o enlouquece. A organização secreta busca entender quem está por trás da morte e desaparecimento de físicos e cientistas pelo mundo todo e Miao Wang se vê preso em acontecimentos que não gostaria de participar.
Esta camada do livro aborda as questões filosóficas envolvendo a ciência e o progresso da Humanidade.

A princípio, parece que as estórias de Wenjie Ye e Miao Wang nunca vão se conectar, pois Cixin Liu aprofunda bastante ambas as personagens. A conexão entre eles aparece no meio do livro, quando o leitor descobre que Wenjie Ye está por trás da organização secreta.

A camada principal do livro no entanto, é a Física. 
Miao Wang descobre um jogo chamado "O Problema dos Três Corpos", onde há a simulação de um planeta chamado Trissolaris. Neste planeta, Eras Caóticas sucedem Eras Estáveis e a população conta apenas com os curtos períodos de tempo das Eras Estáveis para progredir. Nas Eras Caóticas, o frio é tão intenso ou o calor é tão extremo que todos são aniquilados, mas ninguém consegue descobrir o padrão que existe por trás destas mudanças de Eras, pois elas parecem completamente aleatórias.
Esta camada do livro explora as teorias científicas da Humanidade e as personalidades que as construíram ao longo dos séculos. Assim, dentro do jogo, temos Galileu Galilei, Newton, Einstein, filósofos e reis explicando diversas coisas. É como uma aula de Ciências, mas através de um jogo.
Aos poucos, Miao Wang começa a compreender o funcionamento das Eras, o que chama a atenção de Wenjie Ye, co-fundadora do jogo.

Temos também uma camada que explora a vida inteligente fora da Terra. 
Wenjie Ye, depois de ver o pai ser morto, isola-se em uma base militar onde, aos poucos, consegue destacar-se e ter acesso a arquivos confidenciais. Assim, em uma dia de pura amargura com a Humanidade, ela decide tentar contatar vida extraterrestre, devido aos seus conhecimentos de radioastronomia (explicados em todos seus termos técnicos incompreensíveis).
Uma civilização extraterreste responde sua transmissão, alertando que chegarão em 450 anos para aniquilar a Terra. Wenjie Ye concorda e aceita, pois acha que está na hora da Humanidade desaparecer, e não conta para ninguém.

O livro tem diversas idas e vindas no tempo, ora mostrado o tempo presente, ora o passado. Cixin Liu também construiu personagens profundamente perturbadas e desiludidas, e uma atmosfera pesada e melancólica permeia toda a obra.

O final da estória é complexo, surpreendente, esquisito e perturbador. Todas as pontas soltas ao longo do enredo fazem sentido, bem como as narrativas de Miao Wang e Wenjie Ye.

Assim, trata-se de um livro complicado e intelectualmente difícil, muito interessante e profundo. Explicações sobre Física e Astrofísica permeiam o livro do início ao fim, o que pode desencorajar leitores que não gostem do tema ou que considerem muito difícil entender o assunto. É preciso estar preparado para ler uma obra intelectualmente desafiadora, que jogará cálculos de velocidade da luz e gravidade na cara do leitor como quem conta uma estórinha de criança.

Sem a menor sombra de dúvidas, foi o melhor livro de ficção-científica que já li. 

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