O Conto da Flor Azul, parte 1


Sinopse:
Há certos pensamentos que fazem nosso cérebro estalar. Tente imaginar um lugar sem a marcação do tempo, suspenso entre o que você pensa ser a realidade e o que você acredita ser um sonho. Tente, ainda, imaginar que neste mesmo lugar, não há som: você caminha no silêncio absoluto das coisas, como o som do universo em seu vácuo infinito e grandioso. Você consegue sentir a grama sob seus pés e caminha, caminha, caminha - sem direção nem motivos.
Depois de imaginar este cenário, adicione uma flor. Uma flor pequena, azul e misteriosa, que será a chave para todas as perguntas que você faz enquanto caminha. Mas isto não significa que você entenderá as respostas.
O Conto da Flor Azul fala sobre os limites da realidade e da fantasia, uma imersão em uma atmosfera onírica que pode ser verdade, como pode ser uma criação. E também fala da nossa libertação pessoal quando nos vemos sem os limites das referências de espaço e de tempo.

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      A grama era macia e estava úmida. Aliás, era macia somente nos primeiros passos, ela logo notou, pois a grama começou a espetar a sola dos seus pés depois de um certo tempo. Era difícil saber quanto dele – do tempo – havia passado: estava tão distante do mundo que ela sentia que ali não havia tempo algum.
      Eu sei, é difícil imaginarmos um lugar sem tempo. O cérebro estala com a noção da atemporalidade, sem marcação de minutos, de mês, de estação do ano ou de período. Ela sentia-se suspensa por cabos invisíveis, sem estas noções básicas, mas continuava andando, com a grama cada vez mais úmida e cada vez menos macia.
      Ela não sabia de onde vinha, nem para onde ia. Não sabia onde estava, tampouco. Passado, presente e futuro se confundiam na sua cabeça, formando uma matéria viscosa que a impedia de pensar com clareza. E por que ela continuava andando?, você há de perguntar. É porque é isso que os pés foram construídos para fazer. É porque o mundo gira e a vida passa e, se não estamos em movimento, estamos mortos. A vida logo se esvai de tudo aquilo que fica estagnado, à margem dos acontecimentos.
     O que ela estranhava não era a grama pontuda nem a falta de objetivos daquela caminhada sem rumo, e sim, a luminosidade do lugar. Estava escuro demais para ser dia, e claro demais para ser noite. Parecia que o Sol tinha desistido de cumprir suas funções no meio do caminho, e a Lua ainda não aparecera para dar-lhe folga. O céu tinha uma cor própria, que não era azul, laranja ou cinza. Cor talvez não seja a palavra certa. Se pouco antes teu cérebro estalou com a noção de um lugar sem tempo, tente imaginar, agora, uma não-cor. Estalou mais ainda, não é?
      Aquele lugar era como uma casca de fruta velha. E ia de nada para lugar nenhum.
      Ela sentia uma Solidão única, com S maiúsculo, a Solidão mãe de todas as solidões. Veja bem, quando você se sente só, você sabe que existem outras milhares de pessoas por aí, pelo mundo. Você pode não conhecê-las e elas podem não fazer a menor diferença na sua vida, mas elas existem. É uma solidão em um lugar habitado. Dói, eu sei. Mas a solidão dela é outra.
      Lá no fundo, ela sente um oco que ecoa, porque ela intuiu que é a única pessoa que existe. Não há mais nada nem mais ninguém além dela. Por isso, a Solidão dela tem S maiúsculo. Ela intuiu isto por causa do Silêncio – também com S maiúsculo. É o silêncio primordial e essencial do universo, que existe antes da criação do mundo e depois que ele acabe, lá no fim de tudo. Nós não conhecemos este Silêncio do vácuo das coisas, mas ela logo notou que ele era tão denso e tão pesado que ensurdecia. Como a pressão do fundo do mar.
      Estaria ela no começo ou no fim? Não sabia. Só sabia que, onde quer que estivesse, só havia ela. Perceba que, depois de não conseguirmos responder ao quando, nossa próxima pergunta é o onde. Precisamos de muitas referências externas para não enlouquecermos, não acha? A grama não emite som quando pisada. A roupa dela não farfalha quando ela anda. Não venta. O céu não se decide. Nada acontece.
      A Solidão, aos poucos, vai se apoderando dela. Não há com quem falar e nem a quem fazer as mil perguntas que começam a brotar dentro de sua cabeça – e pior, do coração. As piores perguntas são as que vem do coração. Não há nenhuma perspectiva de mudança do cenário no horizonte e, mesmo que ela parasse de caminhar, ficaria ali para quê? Esperando o quê? Andar fazia ela fingir que tinha um rumo e o fingimento, em momentos de desespero, ajuda. Todo mundo já fingiu alguma coisa, em algum momento.
      E então ela seguia, fingindo esperança. Também fingia que não estava sufocando por aqueles malditos S maiúsculos, a Solidão e o Silêncio. Não sabemos quanto tempo ela ficou lutando assim, desculpe se não posso informar as coisas com mais precisão a você. Mas, então, de longe, ela viu um relevo diferente na grama. A vista mal alcançava e deveria haver quilômetros e mais quilômetros entre ela e aquele relevo. E como ele era a única novidade ali, ela se ateve nele com unhas e dentes. Não que fosse uma pessoa observadora, era que tudo ali era sempre tão da mesma maneira que qualquer mudança chamaria a atenção. Continuou caminhando no mesmo ritmo: não havia pressa. Chegaria naquele ponto de qualquer jeito, mais cedo ou mais tarde. Só temos pressa se temos tempo a perder e, no caso dela, nem tempo havia. Ela estava antes da criação dele. Antes da criação de tudo. Percebe como ela era sozinha?
      Ela estava gostando daquela sensação de antecipação. Mais ou menos aquela que sentimos antes de uma festa ou antes de uma viagem, quando a espera pela coisa é melhor do que a coisa em si. Passo a passo, ela foi se aproximando. O relevo foi se tornando um borrão, e o borrão foi começando a ter uma forma, e a forma mostrou ser uma pequena flor. E, conforme ela se chegava mais perto, a flor foi adquirindo pétalas e haste e, então, quando estava quase ao lado dela, viu que era uma flor azul. Sua haste se erguia acima da altura da grama e, na ponta, a flor estava delicadamente pendurada. As pétalas eram poucas, grandes e arredondadas, começavam azul claro nas pontas e terminavam azul escuro próximas ao miolo. O miolo era amarelo gema-de-ovo.
      A primeira coisa que ela pensou foi que as pétalas daquela flor pareciam guardar as cores do céu em si mesmas. A flor tinha um perfume fininho e fujão. Ela arrancou a flor da grama, sem hesitar, porque sentia que merecia um pequeno agrado depois de tudo aquilo que passara até ali. Aquele ato era a criação do mundo – mas ela não sabia.

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